Uma alucinada narrativa surrealista nos quadrinhos Conto de Areia

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Narrativas surrealistas são um tanto incomuns, mas deixam marcas indeléveis na mente dos leitores e espectadores. Quem não se lembra do amalucado praticante de tiro ao alvo em transeuntes n’O Discreto Charme da Burguesia, do mestre Luís Buñuel? Ou da batalha medieval dos sapos em A Montanha Sagrada, de Alejandro Jodorowsky? A escola pode não ter relações lógicas normais, porém fortalece sinapses ao enveredar pela linguagem do inconsciente.

Digo isso porque é de uma baita narrativa surrealista que se trata o novo lançamento da editora Pipoca e Nanquim: Conto de Areia. Esse quadrinho é baseado em um roteiro para cinema nunca filmado escrito por Jim Henson e Jerry Juhl. Henson foi um muito conhecido roteirista, produtor de TV, cineasta e animador americano. Além disso, era marionetista e criou programas basilares do humor americano, por exemplo, Vila Sésamo e O Show dos Muppets. Juhl atuou como seu parceiro profissional em diversos projetos.

O roteiro de Conto de Areia foi escrito entre 1967 e 1974, e transpira cinematografia setentista. Estão ali elementos não apenas de Jodô e Buñuel, mas também de um Altman em Três Mulheres, da paisagem à la Wim Wenders em No Decurso do Tempo, e nas desventuras insanas do obscuro Depois de Horas, de Scorsese.

A magnífica transposição desse roteiro nunca filmado aos quadrinhos ficou a cargo (por encomenda da Jim Henson Company) do quadrinista canadense Ramón K. Pérez, conhecido por desenhar X-Men, Gavião Arqueiro e Star Wars. O resultado, fruto de uma especulação sobre as mais diversas opções temáticas/sonoras indicadas por Henson e Juhl, é um exercício de captação de um tipo de furor cinematográfico em arte gráfica.

Cinematograficamente, Henson é também conhecido por um curta-metragem chamado Time Piece. Quem assiste a essa pérola de dadaísmo fílmico entende um pouco a dinâmica de Conto de Areia. O filme é um apanhado (inspirado claramente em René Clair e Norman McLaren) de extroversões e colagens experimentais, onde rimas visuais, narrativa “non sequitur” e poesia tomam conta de temas controversos.

Ler uma dinâmica dessa natureza numa história em quadrinhos não é novidade (basta olhar o trabalho de pioneiros como Winsor McCay e até Moebius), entretanto, é inevitável tirar o chapéu para Pérez com o resultado de Conto de Areia. Aqui, ele exercita a mais vertiginosa potência narrativa, com código de cores que emula sons, arrojados layouts de página e sobreposições de requadros que estimulam a simultaneidade das ações.

Conto de Areia tem uma premissa simples, mas alucinada: um personagem está numa espécie de celebração local de cidade pequena, no sudoeste americano e, ao atravessar uma certa linha divisória, deve fugir desesperadamente até uma montanha indicada num mapa. Tanques, leões, jogadores de futebol americano e todo tipo esdrúxulo de algoz o seguirão sem que ele tenha tempo de parar e fumar um simples cigarro.

O ritmo ensandecido lembra um mistura do Incal, de Jodô e Moebius, com o controverso filme Mãe, de Aronofsky. Os elementos aleatórios e a agonia do personagem nos fazem lembrar um sonho freudiano: o surrealismo opera por condensação e deslocamento de informações. O que mais desejamos nos escapa por um triz. A vida é uma avalanche de obstáculos e sequer temos tempo de pensar no sentido dela.

Este quadrinho, quase inteiro sem palavras, é como quase toda HQ muda: sua potência é o narrar desenfreado, o metamorfosear das imagens em pulsão de contar histórias. Diferentemente de um Arzach (de Moebius), porém, ele não surge como fruto de total espontaneidade, mas sim de uma meticulosa relação hipotética e virtual entre roteiro de cinema, filme e HQ. Quimera midiática, o resultado é algo bastante inédito, um híbrido que não fica atrás de suas prestigiadas fontes.

Texto original de CIRO MARCONDES

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